Tratamento psicanalítico
Como funciona uma análise? Para começar, a criação de condições para que um ser falante que sofre reconheça algo de si em pontos ignorados de sua história é um trabalho que possui várias camadas, por assim dizer. Se apenas falar resolvesse alguma coisa, dificilmente seria necessário existir uma análise. Então, para começar, a primeira camada envolve a forma de falar. Por exemplo, no cotidiano estamos habituados a censurar, afastar, evitar uma série de pensamentos íntimos que nos atravessam enquanto falamos. Na análise, somos convidados a não fazer isso, somos convidados a exercitar um outro modo de falar a que chamamos de associação livre. Esse convite é uma constante ao longo de toda a duração do tratamento psicanalítico.
A associação livre é fundamental no tratamento, mas, em si mesma, ela é insuficiente, pois ela é um meio para alcançar outras finalidades. Isso quer dizer que é por meio dela que surge o material com que se trabalha em uma análise. É aqui que a presença do psicanalista começa a ficar mais distinta. Isso pois esse material que surge na associação livre permite ao analista fazer uma leitura de como o mundo do/a paciente foi estruturado, composto, bem como a posição que ele/ela ocupa nele, frente aos outros. Vale dizer: como uma história foi ordenada em uma escrita inconsciente. O acesso a esse material abre uma outra camada de trabalho no tratamento psicanalítico. Uma vez que tais materiais apontam para um desejo não reconhecido, ignorado, isso permite ao analista indicar pontos obscuros, contraditórios e/ou ambíguos nessa história. Isso pode promover uma abertura à questionamentos aos quais dificilmente conseguiríamos chegar sozinhos, e, avalio que isso possa fazer parte de uma justificativa do por quê buscar uma análise.
Então, a interpretação que o analista faz coincide até certo ponto com uma interpretação que nós mesmos já fizemos, sem saber que fizemos. Essa interpretação que já fizemos sem saber tende a seguir um roteiro habitual, sob a forma de uma narrativa que nós contamos a nós mesmos. Essa narrativa é muito frequentemente evocada para justificarmos o porquê somos do jeito que somos, o porquê os outros são do jeito que são, e assim por diante. O problema dessas narrativas é que muitas vezes, por terem pontos contraditórios e ambíguos que tendemos a evitar, retornam como sintomas. Podem servir para nos imobilizar, nos impedir de nos engajar com aquilo que desejamos fazer de nossas vidas. Assim, se é apenas até certo ponto que a leitura que o analista faz compromete-se com a leitura inconscientemente feita por nós, é porque o que buscamos numa análise é a possibilidade do surgimento de elementos autenticamente novos através da interpretação analítica – algo que não pode ser previsto ou calculado por completo.
A psicanálise sustenta uma aposta radical: a de que são apenas esses elementos inesperados e surpreendentes que podem surgir no decorrer de um tratamento psicanalítico aquilo que permite reescrever e ler de maneira diferente nossas próprias histórias. Tais reescritas e releituras são importantes por possibilitar ao ser falante novas maneiras de ocupar-se de seu próprio desejo, apropriar-se daquilo que lhe anima em nome próprio. Talvez não seja exagerado dizer que uma das principais vocações da psicanálise é desembaraçar um passado que insiste em retornar no presente, de tal modo que a insistência do desejo possa voltar-se ao futuro, àquilo que ainda não é.