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Por que uma psicanálise?

psicanálise
Hannah Höck, Grotesk, 1963.

Hoje completam 168 anos do nascimento de Sigmund Freud, o inventor da psicanálise, uma prática que tem atravessado épocas e resistido ao tempo. Gostaria aqui de inaugurar este blog com um texto em homenagem à seu aniversário, e no qual buscarei construir um argumento possível para justificar a relevância da prática clínica psicanalítica nos dias de hoje.

Para isso, partamos da seguinte situação imaginária: e se não houvesse nenhuma alternativa a não ser adaptar-se aos regramentos e expectativas sociais e culturais? Por exemplo, e se diante de uma dificuldade de se adaptar à jornadas extenuantes de trabalho, à um sistema de metas que excede nossas capacidades, não tivéssemos outra saída a não ser ajustar-se a essas condições? Ou então, nos relacionamentos — amorosos ou não —, se uma vez formado um laço, sempre tivéssemos de atender as expectativas do outro, não importa quais fossem?

Vamos imaginar ainda que, apesar do sofrimento em jogo nessas situações, existiria um robô que nos supervisionasse a todo momento. Caso não estivéssemos sendo produtivos o suficiente, ou, então, não estivéssemos atendendo às expectativas desse relacionamento, esse robô nos puniria ainda por cima, até que tomássemos uma providência.

Nessas condições, a única providência que poderíamos tomar para resolver aquilo que desvia dessas normas, regramentos e expectativas seria ir a um profissional de psicologia. Uma vez ali, passaríamos por um tratamento para consertar esse “defeito”, tal como quando uma peça de uma máquina avariada é trocada para que volte a funcionar como esperado. E, então, estaria resolvido. Poderíamos continuar trabalhando, nos relacionando, dentro da normalidade, até que chegássemos novamente no limite e tivéssemos que fazer todo esse processo novamente.

A partir daqui, vamos pensar nessa troca de peças efetuada pelo psicólogo. Me parece que há uma grande dificuldade quando tentamos transpor isso para o cotidiano da clínica, pelo menos tal como observo em minha prática. A dificuldade é definir com exatidão as seguintes coisas: qual peça é essa que precisaria ser trocada? Qual peça deveríamos pôr no lugar daquela que supostamente estaria estragada? Finalmente: como é que trocamos uma peça pela outra? Ainda que para facilitar o entendimento recorri a esta analogia com o conserto de máquinas, entendo que essas dificuldades respondem a problemas concretos sobre como operar com o sofrimento na clínica a partir de qualquer perspectiva.

O que é ser normal?

Para tentar ilustrar um pouco a natureza desses problemas que tocamos com essas analogias, podemos considerar uma tentativa existente no campo psi de definir essa peça. Nela, busca-se definir essa peça partindo do princípio de que o humano-máquina possui uma finalidade ou propósito dado de nascença, que seria o de buscar a felicidade. Decorreria dessa visão, que a solução para aquilo que as/os pacientes queixam-se no consultório, seria deixar de lado a negatividade, ou seja, os sintomas, para focar mais naquilo que é positivo. Colocado desse modo, dificilmente alguém poderia discordar que isso seria o melhor a se fazer.

Assim, nessa perspectiva, a peça a ser trocada é definida como tudo aquilo que nos impediria de alcançar a felicidade: por um lado, os sintomas depressivos, ansiosos, e assim por diante, e, por outro, os pensamentos, sentimentos e crenças que acompanhariam tais sintomas. Tudo isso é classificado como “negativo” e parte da “doença”. Por sua vez, a peça a ser colocada no lugar seriam os “potenciais, motivações e capacidades”, sendo estes os componentes “positivos” que nos levariam à felicidade. Parece tão natural, simples e fácil… Uma primeira questão que poderíamos fazer seria: mas, então por que existe infelicidade ainda?

Bem, não podemos dizer que a tentativa de definir as coisas assim seja nova. Nem que tenha nascido no campo psi. Afinal de contas, tentar deixar de lado as “coisas negativas” para focar no que é positivo não é uma invenção de uma psicologia em específico. É uma das estratégias mais intuitivas e difundidas na cultura entre as pessoas para lidar com seus problemas existenciais. Historicamente, toda sociedade produz suas próprias maneiras de lidar com o mal-estar característico de cada época: desde as sociedades xamânicas com a sua relação com a magia, passando pelas religiões, até as sociedades modernas com os avanços da medicina e dos medicamentos, das (psico)terapias de modo geral. Do ponto de vista desse “princípio” de deixar de lado o que faz mal pra ficar com o que faz bem, poderíamos dizer que magia, religião, ciência possuem esse ponto em comum, ainda que sejam coisas bem diferentes.

Não desejo entrar no mérito de questionar se isso funciona. Com certeza, produz efeitos. Gostaria de indicar que isso nos ajuda a pôr em evidência um problema clínico. Por que para alguns isso não funciona? Por que há quem, ainda hoje, se submeta a procedimentos mágicos, religiosos, científicos, etc., e o único resultado obtido é o retorno dos sintomas?

Ora, considerando que trocar essa peça fosse a única opção nessa sociedade imaginária, será que esses humanos deveriam ser considerados como máquinas que vieram com defeito de fabricação? Que possuem peças que não podem ser trocadas? Que não podem alcançar a “felicidade” e estariam condenados a viver na danação? Em outras palavras, formariam um grupo de humanos que estão fadados a existir fora da normalidade?

E se, inversamente, aquilo que consideramos ser o normal — essa tendência à felicidade, no caso —, é que fosse problemático? E se estivéssemos aceitando esse princípio depressa demais? Freud observava que a experiência da infelicidade é muito mais comum e frequente do que a felicidade. E isso parece ser justo para a maioria das pessoas que habitam o planeta terra. Basta considerar o que tem acontecido no mundo à nossa volta: guerras, pandemia, catástrofes ambientais e climáticas, inflação e aumento do custo de vida, mundo do trabalho cada vez mais competitivo — o que faz os salários baixarem, apesar disso muitas vezes ser acompanhado por jornadas mais longas de trabalhos e com uma maior carga. Essa lista poderia seguir…

Não se trata de dizer que a felicidade não é possível. Mas, como falar de felicidade em um sentido significativo, real, genuíno, se quiserem, sem levar em consideração àquilo que anda mal? Em outras palavras, sem dar ouvidos àquilo que pode querer dizer os sintomas?

Talvez a psicanálise tenha pouco a contribuir na definição positiva do que é felicidade. Entretanto, como podem ver, colocar a felicidade como o grande propósito a que todos compartilhamos para tentar definir a peça a ser trocada produz uma consequência: faz da felicidade um ideal que define o que é considerado o normal e o patológico. Mas, e quem define a fronteira entre essas duas coisas?

Podemos até concordar que o sintoma seja uma peça que está trazendo problemas para o bom funcionamento do humano-máquina, mas, só se considerarmos como a peça de uma máquina que não possui esse propósito definido de antemão e, muito menos ainda, por completo. Antes, a lógica do funcionamento dessa máquina, seu propósito, é aberto à possibilidade de rearranjar-se. Isso equivale a dizer que esse propósito não é comum em sua totalidade entre os seres humanos. Por exemplo, a cultura pode prover modelos de papeis sociais desempenhado por homens e mulheres, que poderiam ser visto como propósitos compartilhados entre os humanos, mas isso não nos diz absolutamente nada do desejo que encarna o que é ser homem ou ser mulher nos dias de hoje. Imaginem só como ficaria isso para alguém que se identifique como assexual? Acho que isso é suficiente para ilustrar que há partes desse propósito que são particulares a cada um. E isso participa daquilo que chamamos sintoma. Participa sob a forma daquilo que cada um põe de propriamente seu para existir no mundo, no laço com seus semelhantes.

hannah hoch the father 1920
Hannah Höck, The Father, 1920.

A(há) vida para além da positividade…

Mas, então, se a substituição da negatividade pela positividade nem sempre tem sucesso, o que nos resta a fazer com um sintoma?

Ora, ao invés de travar uma luta contra o sintoma, é possível considerar que ele propõe uma questão à quem dele padece. Só que essa questão ou está sendo mal formulada, ou não chegou sequer a ser formulada. Trata-se de uma questão que diz respeito a cada um de nós intimamente e que nos convoca a tomar uma posição. Como diz Lacan, não se trata daquilo que vulgarmente se costuma dizer, e se faz passar por psicanálise:

“A questão do sujeito não se refere absolutamente ao que pode resultar de tal desmame, abandono, falta vital de amor ou de afeto, ela concerne sua história visto que ele a desconhece e é isto que ele expressa a despeito de si através de toda sua conduta, na medida em que busca obscuramente reconhecê-la. Sua vida é orientada por uma problemática que não é a de sua vivência, porém, a de seu destino, isto é — o que será que sua história significa”.

Dessa maneira, não é nem o problema da origem, de onde viemos, que nos perturba tanto, senão o problema de para onde estamos indo com essa vida que temos…

Isso contrasta bastante com “trocar a peça”. Trocar a peça poderia ser entendido como uma maneira rápida de responder a essa questão que ainda nem foi formulada, tal como se diante de uma questão de múltipla escolha em uma prova, alguém “chutasse” qualquer uma das alternativas sem nem ao menos ler o enunciado antes! Porém, um sintoma pode ser tratado com mais cuidado e atenção. Vale lembrar aqui a recomendação de Freud, quando diz que “se não pudermos ver claramente, vejamos pelo menos com precisão as obscuridades”.

Alguns críticos e detratores dizem que a psicanálise foca na “doença”. Entretanto, estes críticos falham em perceber que, muitas vezes, os sintomas são produtos do funcionamento dito “normal”. Ou seja, é quando o normal passa a estar a serviço da manutenção da tal “doença”. É uma ligeira, mas importante diferença. Essa adaptação da normalidade não se trata tanto de uma “zona de conforto”, como se costuma dizer, mas de um habituar-se a viver com o desconforto — embora isso possa envolver uma estranha satisfação, a qual chamamos de “paradoxal satisfação do sintoma”.

Então, o sintoma é realmente o foco em psicanálise. Mas, é por razões diferentes daquelas que os críticos lhe atribuem: é que o sintoma é o portador de algo que nos anima, ou, ainda, daquilo que nos faz despertar para a vida, em certo sentido. Pode ser uma espécie de antídoto à doença da normalidade.

Não estou condenando a normalidade. Algo da regularidade que caracteriza o “normal” parece ser preciso para vivermos. Se tudo não passasse de uma perpétua ocorrência de coisas novas, sem nenhuma recorrência, dificilmente teríamos memória, por exemplo. Mas, a lição aqui é que podemos ficar tão habituados à conviver com o desconforto, com o mal-estar, com o sofrimento, que ignoramos a possibilidade disso mesmo indicar um caminho para sabermos mais sobre aquilo que nos move, que nos revigora, que nos faz levantar da cama para um novo dia com entusiasmo, com ganas de viver: uma causa pela qual viver.

Portanto, há outras opções do que fazer com um sintoma além de tentar se livrar dele. Se a primeira vista parece muito razoável considerar o sintoma como uma peça a ser trocada sem nem pensar duas vezes, podemos perceber agora que há uma perspectiva contrária: a de que pode nos oferecer uma saída, pois isso que surge sob a forma de um sintoma deixa pistas e rastros de um desejo ignorado e insistente, que insiste em passar à fala para que possa existir.

A provocação mais ou menos absurda que propus inicialmente tinha então o objetivo de fazer notar o seguinte: se, numa sociedade distópica como a imaginada, não houvesse alternativa a não ser adaptar-se à norma, não haveria possibilidade de interrogar-se sobre o desejo.

Mas, afinal, por que uma psicanálise?

Vocês podem estar se perguntando o que isso nos ajuda a responder à questão: Por que uma psicanálise?

A psicanálise baseia-se no reconhecimento de que há uma tendência no humano a ignorar os conflitos, sobretudo, no que estes digam respeito a si próprio. Se você acha que estou forçando as coisas, peço que pare e se pergunte por um instante: por que é tão mais fácil falar das coisas que nos trazem orgulho do que aquelas que nos embaraçam ou nos angustiam de algum modo? Isso é ignorado justamente por ser sentido como algo que perturba uma ordem de funcionamento das coisas.

Ora, por mais estranho que possa parecer, nem sempre aquilo que perturba uma ordem é o problema a ser resolvido. Às vezes, é a ordem que vem colocando um problema…

Considerando essa tendência a ignorar os conflitos, avalio que seja fundamental existir um espaço em que seja possível não se apressar com a eliminação dos sintomas, seja em nome de uma suposta felicidade ou de suposto bem-estar, muitas vezes definidos de maneira vaga.

Então, ainda que existam uma multiplicidade de técnicas e terapias para tratar o sofrimento humano, é legítimo que exista ao menos um lugar onde seja possível sustentar a questão do que isso que nos habita ou isso que habitamos — e que ainda nem foi nomeado — quer nos dizer. Em outras palavras, um lugar para que alguém possa formular as questões que a sua relação com o desejo lhe coloca.

Caso tenha interesse em saber mais sobre como funciona o tratamento psicanalítico, clique aqui.